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sexta-feira, dezembro 02, 2011

o boi












a quase guerra duma camisa no varal com o vento. uma cerca de arame farpado protege o quintal. o mito passeia pelo paladar, é carne! nada bucólico, cru, não causa náuseas e mata a fome. no vigésimo capítulo, sob a sombra da pedra preta, Guernica pasta. é bovina a carne que dobra no prato e meu olho desprende mil farpas na direção daquela camisa suada, entreaberta sobre o peito dele. consumo a erva da beira da estrada, a mesma que alimentou o boi. Carlos dorme, alheio à refeição e ao mito.

quarta-feira, novembro 02, 2011

quase Hemingway























isso foi só no começo, enquanto escrevia os oito capítulos iniciais. eram sensações ruins, não sabia bem se era ficção ou romance. alucinada, vomitava um monte de palavrões. dizia: "Carlos, continue batendo!". e ele respondia: "comprei botas novas!". depois de boas surras eu fumava um pouco, esmurrava a porta do mobilhado e caía no sono. aquelas coisas continuavam brotando da minha boca, a violência era atraente para nossos corações atormentados. ele era parecido com Hemingway, quem sabe um pouco melhor. abri a gaveta do meio e puxei o porrete, guardado embaixo das calcinhas e bati nele com toda força, “enfia no rabo, com querosene e coloque fogo, honey!”

quarta-feira, outubro 26, 2011

dados





















lançaram-se extremos sobre o veludo azul, fácil demais para ser real. “seis, dois”, gritava o crupiê. suspiro do que não veio. no décimo quarto capítulo, perceberam que os dados são viciados derrota. um era seis e o outro nunca caía com um, ambos infiéis provocadores. se juntos somassem sete ou onze não estariam entregues aos jogos de sedução nem ao dilema da perda.

terça-feira, outubro 25, 2011

tramontina
























trago marcas de faca no peito, no ombro esquerdo e nas pernas. foi a falta de amor de meu pai por minha mãe que causara tais cicatrizes. herdei dele o abandono precoce e dela os amantes. e é aí que a minha história se parece com a de Carlos, a diferença é que não acredito em espíritos. no vigésimo sétimo capítulo, eles arrastavam um corpo para o rio, quase não havia sangue, não fosse o orifício no peito do primeiro tiro, o único que sangrava. os amores rasgam feito as facas de cozinha, pouco afiadas para não cortar os dedos, mas pontiagudas e no tamanho ideal para furar fundo.

segunda-feira, outubro 24, 2011

o circo

























se dissesse que não gostava do espetáculo ririam de mim. tenho antipatia por palhaços, pois se parecem comigo. minha desgraça é pano de fundo para a alegria alheia. a platéia esperava ansiosa pelo globo da morte, o barulho ensurdecedor para quem não quer ouvir mais nada. no décimo oitavo capítulo as labaredas giravam na mão daquele homem, segurava as adagas como se não cortassem. o público vibrava e a roda girava num ritmo frenético. ela era o alvo do atirador de facas.

domingo, outubro 23, 2011

a cruz
























a ignorância imperava ali. comprara um martelo e se encheu de alegria. nunca fora tomado por um sentimento tão crucificante e redentor. hoje todas aquelas redomas de vidro seriam quebradas. no décimo sexto capítulo, os olhos de Carlos estavam vazios e só pensava no dolo de quebrar a resistência dela.

sábado, outubro 22, 2011

baixio das bestas

















datilografou três possíveis desfechos para a cena, o personagem permanecia caído no chão. a malhação do bode expiatório cabia bem à ocasião, as pessoas se acalmam ao extravasarem suas insatisfações, mas por hora não descartaria os pregos e nem a arma de fogo. ela indagava-se diante da humanidade que crucifica seu salvador é melhor dar a outra face, abotoar nele o paletó de Judas ou deixar que ele resolva o problema sozinho?

quinta-feira, outubro 20, 2011

bailarina

















lembrava de meu pai naqueles dias de chuva, foi num dia como aquele que foi e não voltou. ele nunca esteve muito tempo dentro de casa e recordava-me dele apenas pelos presentes que trazia e pelo cheiro de bebida e cigarro que exalava. trouxe-me uma vez uma caixinha de música, dessas que vem com uma bailarina. talvez por isso bebia e fumava tanto, para ter de volta o cheiro de infância. no vigésimo quarto capítulo, Carlos a tirava pra dançar e ela sentia-se como a bailarina da caixinha, rodando, bêbada, sobre um mar de espelhos.

quarta-feira, outubro 19, 2011

o boi



















a quase guerra duma camisa no varal com o vento. uma cerca de arame farpado protege o quintal. o mito passeia pelo paladar, é carne! nada bucólico, cru, não causa náuseas e mata a fome. no vigésimo capítulo, sob a sombra da pedra preta, Guernica pasta. é bovina a carne que dobra no prato e meu olho desprende mil farpas na direção daquela camisa suada, entreaberta sobre o peito dele. consumo a erva da beira da estrada, a mesma que alimentou o boi. Carlos dorme, alheio à refeição e ao mito.

quarta-feira, outubro 12, 2011

preâmbulo

















o cansaço dominava o cenário, cochilou com o cigarro entre os dedos. o vazamento da pia dava o compasso da cena. a boca aberta, podia ouvir seu coração e a quietude sob a coberta alaranjada. a sensação de sossego beirava a fúria, jamais confessaria o que fez. talvez a beleza das coisas resida nesses momentos suspensos. o tudo habita onde aparentemente nada acontece.

domingo, outubro 02, 2011

olho mágico


















se olharam fixamente sem dizer uma só palavra. uniram-se para ver em alto relevo, o sangue na jaqueta de couro era só pretexto, o que queriam mesmo eram sensações em três dimensões. enquanto um sufocava, o outro respirava com dificuldade e o terceiro nem isso. mal se davam conta que precisariam se livrar do corpo, beberam até perder os sentidos e dormiram com o morto naquela noite.

sexta-feira, setembro 02, 2011

calundu
















a mãe falava com os mortos e cedia seu corpo a eles. Carlos lembrou de que quando criança ouvia conversas no escuro, sussurros por trás das portas e nunca soube dizer se era a religião ou o estilo de vida dela. ao amanhecer o banhava com unguentos e canções de maldição, um culto secreto de glória ou de lamentação, como saber? recordava que fora tomado por tios e por desconhecidos e não se lembra se vivos ou não. o certo é que era violentado por herança materna. no vigésimo quinto capítulo, ele escondia o rosto para chorar e sufocava os soluços no travesseiro. a fita da máquina de escrever estava gasta, mas mesmo assim queria continuar escrevendo, ela não era sensível e nem tinha tato para assuntos tão pessoais.

terça-feira, agosto 02, 2011

cortinas















pensava que ser livre era bom, se perder nas escadas rolantes, estacionamentos rotativos e vagões do metrô. se entregar a estranhos era divertido e perigoso. espiava por trás das portas e não se assustava com mais nada. no décimo quinto capítulo as igrejas estavam lotadas e ela já não queria perdão, enrolaram o corpo nas cortinas e os dois desceram com ele pela saída de emergência.

sábado, julho 02, 2011

aprendiz























fosse um misto de insegurança e certeza, nem isso. aquilo era torpor cego, loucura. personagem comandava certeiro e brotava em cada linha mal feita, em cada palavrão dito enquanto ele dormia. determinada a fechar aquele ciclo digitava calada e faminta pelo verbo. no trigésimo nono capítulo, não era Carlos que pulava a janela e sim a realidade nua, violenta e sem alegorias, aprendia com ela.

segunda-feira, junho 20, 2011

amor






















serviu-me a flor como prato principal. ensinou-me arrancar pétala por pétala até chegar ao coração. esse sim, era iguaria fina desconhecida ao meu paladar que aprendi a degustar e salgar por suas mãos teatrais. no décimo terceiro capítulo, ela descobriu que a alcachofra não é flor e sim inflorescência, como o abacaxi. juntou os papéis de seu último pretenso livro e os jogou pela janela, rindo! um copo com uísque, não em grande dose mas o suficiente para fazê-la dormir.

quinta-feira, junho 02, 2011

expiação
























amarraram penas e braços, fazendo lembrar da condição eterna de subjugada. a boca deixaram solta, pois já não importava mais o que dissesse, eram só palavras de um serzinho magoado e isso o divertia. não chorou em nenhum momento ou implorou pela liberdade, por saber que isso mesmo que queria e não daria essa satisfação. vieram os outros e por falta jogaram pedras, é fácil ser pedra.

segunda-feira, maio 02, 2011

peixe morto



















Já te pedi algumas vezes para que não me olhasse assim, esse seu jeito quase me dói, mas sabe de meus defeitos, não ouso enganar ninguém.
Hoje posso ficar mais um pouco só pra te agradar, vir deitar mais cedo, encher seus ouvidos de sonhos e seu corpo de amor. Vou deixar o sol dormir um pouco mais e sustentar seus medos entre meus seios, sem promessas posteriores.
É mais fácil amar de verdade no passado do que no presente. Lá no passado, como lembrança trancafiada em algum canto escuro, o amor é garantido por ser pretérito.
Ontem deparei-me com vários olhos como os seus boiando na lagoa Rodrigo de Freitas.

sábado, abril 09, 2011

móbile



















os olhos brilhavam, ele bailava num ritmo próprio quase alucinado revirava-se. ou seria apenas o vento, um frescor sob sua armação? erguia o queixo para o alto como se orasse, mas só conseguia aquela expressão quando me ouvia gemer depois de ser currada, a minha dor soava redenção. no nono capítulo, ela revelava toda honra e toda glória ao deus príapo. Carlos esquecia-se de suas dores e tornara-se Dom Quixote queimara todos os moinhos de vento, galopava e gozava sobre sua Dulcineia.

sábado, julho 11, 2009

João, o operário padrão

João chorava ao ver o Van Damme apanhando um pouco antes de vencer as lutas. Até se emocionava com finais de novela. Lia poesia, mas não era gay, não era.
Justificava dizendo que mulher adora essas coisas. A poesia certa faz qualquer paquita tremer e te dar gostosinho.
E depois do cigarro, quando declamava algo Camoniano rimando com a trepada, elas repetiam ainda mais amorosas.
As potrancas precisam de palavras doces e tapinhas de leve nas ancas. Só usou a palavra vadia quando uma delas suplicou-lhe ao pé do ouvido.
João era sensível!

quinta-feira, abril 02, 2009

O preço



Estava disposta a pagar o preço, saíra de casa com aquela intenção, de encontrar o que deixara para trás há tanto tempo. Levava os roteiros debaixo do braço e esperanças simples, como um pequeno martírio por buscar aquele que há mais de dez anos a abandonara, sem ao menos dizer adeus. Trazia nós apertados em sua garganta e tantas perguntas por fazer. E debaixo do braço o roteiro de vidas inteiras, num intento teatral. E os passos conduziam-na para o confronto final, quase latente em seus olhos.
Queria chorar como o fez há muito tempo, mas as suas lágrimas secaram, queria apenas fitá-lo e encarar como se fosse mesmo um trabalho, como se os escritos fossem maiores que as suas dores de abandono, como se cada ato teatral desembocasse apenas no aplauso final de uma platéia desconhecida.
Entrou em uma loja de conveniência, bombons? Não doces demais para o momento, talvez um mimo branco, um cachimbo, uma caixa de charutos, será que ainda fumava?
Comprou um vinho, talvez fosse um presente bom, para alguém tão requintado, ou talvez fosse demais para alguém tão simples, não o conhecia mais. Resolveu então deixá-lo guardado para outra ocasião especial.
No roteiro as palavras ditam sobrecarregadas a cobiça. Demonstram a insatisfação com uma revolta, enganam-se em meio de orgias verborrágicas, quase plásticas e inconstantes.
As palavras deleitam-se de seus olhares míopes, que não desejam a visão e vêem os dias esconderem-se no caos e nas falésias ocupadas, como as mesas de um café de esquina, que não disfarçam o vazio de tentações.
Na vida real uma porta se abre, depois de tanto tempo, ela o vê ali, de pé e tão receptivo, sorridente e lascivo. As mãos não dissimulam, querem os pecados vãos, choram as faltas. Querem queimar no corpo alheio, entre o tesão vigoroso e o movimento vagaroso.
A fome das mãos trazem a revolução das carnes, das peles, dos olhos revirados em rotação obtusa, e confusa. Estavam secos de si, sedentos um pelo outro e vertiam-se em fluidos corpóreos, palavras sem nexo ou léxico. Apenas o gozo, silencioso e gentil.
Tentaram no fim um sorriso prazeroso, se esconderam entre braços e pernas e se encaravam pelo canto dos olhos, extasiados escondiam um riso, quase em um choro contido das perguntas não feitas e respostas não encontradas.
Num jogo de fuga e esconderijos secretos, eles estavam entregues, sabiam mais de si do que do outro e talvez fosse só isso que os interessasse, mas continuaram se observando até que arrancam-se os olhos, num frenesi dialético.
Não olhariam mais para trás.

domingo, janeiro 11, 2009

O poeta


Em cidades do interior quando morre alguém as famílias pagam um carro de som para comunicar o acontecido e assim foi mais uma vez, como tantas outras vezes naquele dia. O carro mais uma vez foi contratado para rodar a cidade inteira e de novo, e quantas vezes forem necessárias para que ficasse bem claro que algum fulano tinha passado dessa. E por incontáveis vezes o carro rodeou a pequena praça, e devagar as pessoas iam se aglutinando para trocar a indignação, para mexericar sobre a viúva, sobre os filhos, netos, uma casa que poderia ter ficado de herança, algumas dívidas sanadas pelo óbito.
Ao ligar o rádio aconteceu o inesperado, algo que jamais tinha acontecido, ouvia-se o nome completo do falecido e informavam ainda a hora e o local do velório e do enterro, por certo era político, ou algum filho da burguesia, que não poupava nem o defunto para fazer pose de aristocracia, para anunciarem no rádio, era um absurdo o valor de uma pequena chamada entre os maiores sucessos do momento. Mas a voz do locutor parecia embargada, soluçada, chorosa e sem querer citou o morto como um poeta, rimador, cancioneiro, trovador, que além de tudo era amigo, companheiro de umbigo, de boteco e fadiga. E que para quem o conhecesse que não usasse a velha desculpa de que não ficou sabendo, pois até no inferno haveriam de saber que o poeta morreu.
E ao ouvir aquilo tudo meu coração estremeceu, não havia lido um verso seu, e constatei por fim que o poeta é ser como os outros, se curva, se dobra perante a morte, embora muitos digam que não. Fiquei um tempo com esse pensamento, sentindo-me um poeta morto, que deixou para trás seus versos mal amados, mal lidos, maltratados, seus versos tortos de lamento, indignação e de morte, enquanto ela o levava.
Dizem também que poetas estão à frente de seu tempo, que são seres incompreendidos, que só fazem sucesso depois de uma ou duas gerações, mas esse poeta não esperou, apenas foi como tantos Vinícius, Tons, Jorges, mas deixou-nos sua obra.
Concordarei enfim com os que dizem que os poetas não morrem, eles são eternos em sua obra, vai meu amigo e seja lido!

quinta-feira, dezembro 25, 2008

Ironia Natalina


Era manhã de Natal, mas a realidade seria a mesma em qualquer outro dia.
Depois de muito caminhar encontrou o açude de onde tirava água desde que se entendia por gente. Nunca a seca castigara tanto seu sertão, jamais deparou-se com aquela visão medonha, um misto de barro e lama seca. Mas não só o açude, não só o sertão, sua alma estava seca, quebradiça como a galhagem da caatinga, como o leito rachado da margem.
A comida estava no fim e não sabia por quanto tempo a sopa de palmas aplacaria a fome de sua prole. E ali, enterrada até a cintura no buraco lamacento, perguntava-se como iria voltar. Já não tinha forças para se levantar, percorrer o caminho de volta, seria a via sacra, seria sua penitência involuntária, imposta por sua árida realidade.
O que dizer aos filhos, não poderia olhar em seus olhos esbugalhados de fome e sede, pele sobre osso e dizer que a água acabou.
Cada passo uma pontada no peito, mais o ritmo de sua respiração aumentava. Até que por um momento parou. Quis sair correndo, pedir para os santos, para Nossa Senhora, que fizesse chover, que mandasse suas lágrimas para aplacar a sede de seus filhos, pois ela sabia da dor, ela a entendia, viu seu filho morrer no sofrimento e foi forte, não abandonou Jesus em sua hora difícil e relutante continuou a caminhada.
Quando entrou, um dos filhos sentado aos pés do fogão de lenha, dizia baixinho:
“ _ Santos e Nossa Senhora no sertão são surtos!”

terça-feira, março 11, 2008

Cidade baixa



Contam-me meus ancestrais, deuses do fogo e demônios da água, que em um encantamento debocharão por eternidade do que foi dito, lido ou escrito.
E as concubinas dançam valsas de anos atrás, com os velhotes que passam o dia jogando gamão e as noites passando a mão em nádegas alheias. Elas não esperam grandes fortunas, nem glória, apenas a aposentadoria deles, no fim do mês.
Perdem-se na vida que não tocam para não ferí-la, para não estripá-la.
Eu já desisti das crendices e dos misticismos das pessoas fora de meu tempo, dos meus antepassados e até de mim estou farta.
Por vezes me pergunto, quando é que as putas da cidade baixa desistirão?

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Vidinha medíocre



porque tento me convencer que a vida é boa? e todos os dias pela manhã, fazem o mesmo, acordam-me com uma propaganda refrescante de creme dental, outra crocante de margarina e ainda por cima a risadinha plastificada de ana maria braga e um louro de espuma.
isso lá é vida? ser um como tantos. uma dona de casa que não copia receitas de bolo e sim faz pesquisa na internet sobre venenos, drogas ilícitas e viagens aéreas.
que espécie de gente sou?
ou será que todos são assim e tentam se adaptar?
um amigo disse hoje, que os viadutos o chamam, prometendo aliviar suas dores, mas eu não acredito nem em bula de remédio, acho que todos prometem apenas o que não podem cumprir.outro amigo me disse que alçar vôo do galeão era lindo e assustador, um pedaço de terra curto, percorrido em segundos pela aeronave e depois um mar a perder de vista, com o cristo redentor ficando para trás.
dizer o que, se já sabia da sensação. mas pior que isso são os tumbeiros internos, que batucam o coração entregue.
"aqui não, aqui não, aqui não bate um coração!"
o certo seria avisar das decepções, que a gravata de bolso não seria usada, nem mesmo a porta de emergência.
quando soubesse que os pés tocaram aquele chão o caos interno instalar-se-ia, não por aquele sentimento passageiro, mas pelas negativas de si, acumuladas e guardadas por tantos anos.
o copo d'água poderia fazer falta, para afogar aquelas mágoas secas.

domingo, novembro 04, 2007


A Noiva

Recordo me de sua feição aflita e feliz, era o centro de todas as atenções, os olhos se voltavam para seu vestido, finamente bordado, e para o seu compasso de caminhar lento. Parecia que a felicidade era geral, mas comigo era diferente, eu não era o noivo, e estava com alguém que não escolhi para mim. Cada um, como em um teatro representava bem seu papel, a mãe da noiva chorava, o pai esbravejava com o noivo e o ameaçava.
As madrinhas usando muita maquiagem nas faces, os padrinhos todos parecendo pingüins em dia de festa, o padre enfiado em sua batina franciscana, e os menores correndo e gritando em volta da cena. E a música parava, para que pudesse ser feita a cerimônia. E meus olhos não saiam dela, não que minha acompanhante fosse menos bela, ou tivesse menos elegante, muito pelo contrário, era aceitável, mas meu coração já tinha dona, e eu não era o noivo.
Revoltava-me a idéia de não ser o noivo, mas a noiva não parecia aborrecida, esboçava até uma certa satisfação. O que ele tinha que me faltava era apenas o antebraço dela, sua mão, seus dedos finos, seu toque, podia até imaginar o cheiro dela, e só de pensar os pelos se eriçavam todos.
A música volta a tocar: “Mas Pedro fugiu com a noiva/ na hora de ir pro altar/ a fogueira está queimando/ o balão está subindo/ João consolava Antônio/ que caiu na bebedeira”.
Bem que poderia ter sido escolhido para ser o noivo, mas todo ano era assim, nunca conseguia o par que desejava, e ficava sempre com outra que teimavam escolher por mim, uma vez com uma menina que quebrou o braço uma semana antes, outra vez com a minha irmã, outra vez com a Verinha, e cá entre nós dançar com ela era o vexame maior que poderia passar.
Bem que poderia ser o noivo, e quem sabe tomasse um beijo dela, e talvez me esqueceria que um dia quis muito ser o noivo e escolheram para mim outro par.


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quarta-feira, julho 11, 2007

Sobre Narciso


Como tantas e tantas vezes, essa idéia já havia me tocado a alma, percorrido a espinha, com a sensação de fim. Mas era mais uma, entre outras inúmeras vezes, que eu assumiria estar no fundo do poço.
Talvez tivesse acabado, já não o esperava como antes. Aquela ansiedade de outrora desaparecera, assim como a paixão efervescente das taças de champanhe que dividimos há muito tempo atrás.
Ao chegar, corou-me com um beijo frio, como fizera por todos aqueles anos. E eu convencida que acabaria ali mesmo, que debulharia todo o rosário de infelicidades, jogaria meia dúzia de palavras causticas e derreteria aquele ar de superioridade em dois tempos, mas me calei, rotineira.
Sentou-se a espera do jantar. Eu nem me mexi.
Ficamos horas a nos fulminar com olhares tortos, quase sem reação e nenhuma palavra.
Otávio, provavelmente nem se dera conta que fiz de tudo para mantê-lo ao meu lado. Fiz dele meu par, meu espelho vivo, meu cúmplice perfeito e agora estávamos estagnados àquela mesa de jantar.
Valsamos como se eu fosse o cavalheiro da dança e ele, a mais bela donzela, rodopiou em torno de mim incontáveis vezes, aliás tantas quantas eu pude suportar, mas eu nem me dei conta que eu rodopiava em torno dele também e que seus passos eram mais vorazes que os meus.
E para dançar só, dei a ele a liberdade de ter qualquer par e no maior salão que se possa imaginar, ele valsou com todas. Encantou cada uma delas com seus olhos fulminantes.
Confesso que divertia-me com a sensação de saber que ele voltaria para mim, como sempre voltou. Mas num certo momento, cansei-me, nos cansamos do nosso jogo.
Não acredito em amor, apenas nos refletíamos um no outro, pobre e nós, tão encantados com nossas imagens, que nem nos percebemos a distância que nos abatia, a cada rodopio, a cada gesto.

quarta-feira, maio 30, 2007

O preço

(Foto de Bridgitte)


Estava disposta a pagar o preço, saíra de casa com aquela intenção, de encontrar o que deixara para trás há tanto tempo. Levava os roteiros debaixo do braço e esperanças simples, como um pequeno martírio por buscar aquele que há mais de dez anos a abandonara, sem ao menos dizer adeus. Trazia nós apertados em sua garganta e tantas perguntas por fazer. E debaixo do braço o roteiro de vidas inteiras, num intento teatral. E os passos conduziam-na para o confronto final, quase latente em seus olhos.
Queria chorar como o fez há muito tempo, mas as suas lágrimas secaram, queria apenas fitá-lo e encarar como se fosse mesmo um trabalho, como se os escritos fossem maiores que as suas dores de abandono, como se cada ato teatral desembocasse apenas no aplauso final de uma platéia desconhecida.
Entrou em uma loja de conveniência, bombons? Não doces demais para o momento, talvez um mimo branco, um cachimbo, uma caixa de charutos, será que ainda fumava?
Comprou um vinho, talvez fosse um presente bom, para alguém tão requintado, ou talvez fosse demais para alguém tão simples, não o conhecia mais. Resolveu então deixá-lo guardado para outra ocasião especial.
No roteiro as palavras ditam sobrecarregadas a cobiça. Demonstram a insatisfação com uma revolta, enganam-se em meio de orgias verborrágicas, quase plásticas e inconstantes.
As palavras deleitam-se de seus olhares míopes, que não desejam a visão e vêem os dias esconderem-se no caos e nas falésias ocupadas, como as mesas de um café de esquina, que não disfarçam o vazio de tentações.
Na vida real uma porta se abre, depois de tanto tempo, ela o vê ali, de pé e tão receptivo, sorridente e lascivo. As mãos não dissimulam, querem os pecados vãos, choram as faltas. Querem queimar no corpo alheio, entre o tesão vigoroso e o movimento vagaroso.
A fome das mãos trazem a revolução das carnes, das peles, dos olhos revirados em rotação obtusa, e confusa. Estavam secos de si, sedentos um pelo outro e vertiam-se em fluidos corpóreos, palavras sem nexo ou léxico. Apenas o gozo, silencioso e gentil.
Tentaram no fim um sorriso prazeroso, se esconderam entre braços e pernas e se encaravam pelo canto dos olhos, extasiados escondiam um riso, quase em um choro contido das perguntas não feitas e respostas não encontradas.
Num jogo de fuga e esconderijos secretos, eles estavam entregues, sabiam mais de si do que do outro e talvez fosse só isso que os interessasse, mas continuaram se observando até que arrancam-se os olhos, num frenesi dialético.
Não olhariam mais para trás.

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quinta-feira, abril 19, 2007



Luta
Já não o queria como antes, desejava agora estar com outro, bem longe dali. Mas já não tinha forças para lutar contra os contratos sociais, contra as regras de conduta. Nem contra suas carnes. Seus sentimentos eram outros, mas ainda não tinha convencido sua pele, suas entranhas, do contrário.
Observava-o dormindo, ohava por horas a fio e depois o despertava, para tomar o melhor dele. Mas na hora do estar, estava com outro ali, naquele lugar.
Pensava em Pedro, sim Pedro era seu amor mais profundo, Pedro a amava todas as noites, possuía sua alma e seus pensamentos, seu gozo.
Mas quando abria os olhos era Víctor que estava lá, segurando-a de olhos virados, por certo pensava em outra também.

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terça-feira, abril 10, 2007

Alguns textos que amigos fizeram em minha homenagem:

Larissa...
E por abrir os olhos nessa manhã
...despertei na lentidão de passos
que pareciam ser os meus
Eram de outros,
mas traziam os meus sabores
...galgavam degraus
soluçavam precipitações
e esperavam para espiar horizontes
Despertou cedo - diante da aurora
roubou minha atenção
Seqüestrou meu sorriso
Aflita! Me vi diante do espelho
Fruto de um desejo
Nem versos _ nem poemas
Segredos do peito
...que não grita
Geme _ em silencio
E no meio da noite:
sussurra!
O que diz? Não te conto
pois se o faço!
Vence-me o desejo
E nos teus braços me largo!


Lunna Guedes...Abraços em dias de lentas composições!

****


DA FIDELIDADE
(conto de Antônio Alves)

A Larissa Marques


Ao notá-lo inconsciente percebi que era meu inimigo. Este é o momento ideal para alguém tramar algo, de olhos fechados, sobre a cama, de bruços. Retiro o lençol de meu corpo meio zonza, colocando as mãos na cabeça na esperança inútil da dor súbita passar; por um milagre a dor passa e levanto-me sem sobressaltos acendendo o abajur que um outro me dera no Natal em troca dos bons serviços. A luz avermelhada ofusca os olhos como num flash estranho. De imediato a apago na preferência feliz das trevas de minha caverna; acendo novamente e o incômodo vai embora no limiar da noite escura, como num estalo da divina providência. Está lá, de bruços, no ardor de um fingimento, arquitetando meios de me destruir, montando quebra-cabeças, estratagemas sombrios.
Caminho disfarçando-lhe importância, de um lado para o outro, depois até à janela. Admiro a Lua, sempre lá, em órbita. Penso no anti-romantismo de quem veio a esta espelunca e dorme pesado, articulando planos, depois de sugar minha alma em movimentos compassados e torpes; certamente não contemplou uma lua boiando no céu iluminando os corações ternos dos jovens e dos poetas. Na cidade veloz os automóveis flutuam alucinados cheios de motoristas desenluados levando mulheres de minissaia e maquiagem forte para lugares escuros e baldios.
Penso em Carlos, num ímpeto, a fazer versos de rimas previsíveis mas que de certa forma me acariciava o coração, talvez eu quisesse mais que carícias, talvez eu quisesse ser mesmo destruída, trespassada. Às vezes na solidão sinto saudade dele, de sua mão branca e sem pelos a tocar meu rosto como quem nada quer. Eu queria o que Carlos não podia dar. Ainda tenho a caixinha de sonetos guardada a sete chaves e de quando em vez algumas lágrimas caem depois de uma relida enfática. Que destino cruel teve Carlos. Aquele agosto jamais será esquecido.
Parece que o homem deitado quer acabar com a mentira e abrir os olhos de vez. Não, está quieto, ainda de bruços, pálpebras fechadas. Desejaria que ele declamasse algo de Byron, mas o seu braço forte e encardido de operário e falhas em sete dentes eram indícios de sua ignorância para com o lorde. Ah, Byron seria perfeito demais! Seria um Carlos operário, e Carlos era tão-somente Carlos, um funcionário de repartição pública, sem mais. Lembro-me do seu choro quando parti. As cartas com versos apaixonados que recebi depois pareciam mais esfuziantes e os poemas mais organizados, era como se ele tivesse adaptado a felicidade dele à minha distância e isso, de certa forma, não nego, me fazia mal, pois eu era um joguete na sua escrita romântica e ardilosa. Quem sabe eu fosse a musa inatingível. Decidi encontrá-lo, já era tarde. Aparecera morto, com uma bala alojada no crânio. Carlos só me ofertava amor e lua e nada mais.
Teve um dia em que fomos quase felizes, quando saímos correndo pela colina como bobos e deitamos com a face para o céu até o cair da noite, contando as estrelas, sem tocar palavra. E depois até o amanhecer. Abraçamo-nos por um bom tempo, nos beijamos enamorados e nos conhecemos pela primeira e única vez. Carlos sabia escrever o amor, não consumá-lo. E assim ficamos até o dia da escolha.
A noite está vazia, sem estrelas. Da janela do oitavo andar no centro da cidade a vidraça me protege. Deito-me na cama escorando a cabeça no cotovelo direito e deixo deslizar a mão esquerda sobre o corpo do inimigo. Cabelos, dorso, nádegas, panturrilha e pé. Eis uma combinação de luxúria se não fosse minha conduta sacrossanta. Fecho os olhos e penso em Carlos e na sua voz de veludo. Sussurro nos ouvidos do outro “eu te amo, Carlos”. Por sua vez, o homem se revira sobressaltado e me diz nomes feios, impronunciáveis. Toca-me como objeto, traslada meu corpo e me ama a seu modo.
Depois de feito, o homem se veste resmungando alguma coisa vil e bate no meu rosto com pequena força, sorri, deixa um trocado no criado-mudo e sai vencedor da grande guerra, mal sabendo da traição que sofrera, pois Carlos está sempre aqui, dentro de mim, suspirando poesia a cada punhalada do inimigo, possuindo-me verso a verso, rima a rima, numa métrica perfeita, sonetamente.
Um outro entra pela porta e sei que vou amar Carlos mais uma vez.



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Prosa sem nome para a poetisa morta. O vento, agora como Arias improvisadas, sopra o rosto milenar da pedra da gávea. Todo alvergue nesses dias amarelos de fome, sonhos mortos e goles de liquido bacante, condena o naif por sua discrepância diante das coisas. Meu pobre quarto, tão pobre como a massarda de Balzac com 23 anos, não desconfia que me ponho rende a janela esperando aquela promessa feita por uma louca poesia que diz assim: “Sou como o ar que há no mundo, o vento leva-me para onde quer”. Probo, só e bêbado dela, espero que o vento traga até minha massarda essa mulher que crava suas unhas, suas palavras e seu mundo bem aqui onde o sangue pulsa, onde a mão quer a matéria para escrever. O peito corre como correnteza bravia!Para onde vai peito? Qual o cheiro dessa dama e já dona de mim? Qual a temperatura de seu corpo a quantas loucas passadas bate o coração dessa que virá como o vento? Em um paraíso artificial que projeto com fogo e papel e ela ri, riso de afogar homens em mares laríssicos, mar ou cama! Se for cama qual melodia posso arrancar-te seu corpo? Como é morrer de sede ao percorrer o deserto de seu corpo e descobri os oásis que há em tua boca? Quantas vezes mais o sol vai nascer como nascera essa mulher? Nunca pode uma mesma e bela coisa nascer novamente! Pode? Finda-ser-a as diletas conversas que deitamos sobre papel ou desejos? Brinco teu jogo aristocrático e despótico onde sou escravo, sendo rei. Visto em ti a fantasia de rainha para despí-la em segredo e fazer-te minha escrava senhora de mim.

Rafael Vate Caetano, Rio de Janeiro ou deus castanho 6 de abril de 2007.

segunda-feira, abril 09, 2007



Luxúria
O dia não tinha brotado no horizonte, mas o ar estava fresco, todos dormiam. Sentia-se livre, solta das arestas rústicas que a prendiam nas buscas diurnas monumentais. Sentia-se calada, pois sua voz estava presa em seu ventre, em seu sexo. Não queria acordar ninguém, mas foi tomada por um pensamento gentil. Uma saudade do que se esqueceu de acontecer.
Pousou sua mão quente sobre seu sexo frio, suspirou e encaixou a mandíbula. Lembrou-se de como tivera sede por si mesma e por um momento pensou em outras mãos ali.
Fechou os olhos e forçou seus quadris contra as mãos, tinha desejos ocultos e pensamentos leves e despretensiosos.
Era um devaneio incontido, que empedrou-se em pensamento quase real, as mãos buscavam seu sexo e o sexo retribuía a busca constante e prazerosa.
Tão silenciosa e pudica que por um momento se entregara à ilusão da luxúria, de possuir-se a si mesma, num estágio pleno de si.
Tocou-se fundo, o mais fundo que pôde alcançar e num delírio pleno de sentir-se vibrar, gozou uma, duas, incontáveis vezes consigo. Com ela não precisava falar, não precisava suspirar em demonstração de satisfação, o gozo se bastava.
E quando se satisfez de si, quis beijar-se, mas pousou sua mão fria, sobre seu sexo quente e adormeceu.

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